segunda-feira, 28 de maio de 2018

A Arte Oculta de Hilma af Klint e sua Pintura para o Futuro

Entrevista com Johan af Klint e Luciana Pinheiro Ventre.

Porta-retrato feito por um fotógrafo desconhecido, c. 1900
Para alguns ela é uma bruxa, para outros ela é a pioneira da arte abstrata.

A artista sueca Hilma af Klint (1862–1944) foi uma mulher enigmática, viveu de maneira simples e ascética, não casou, não seguiu o padrão de sua época e pertenceu a uma das primeiras gerações de mulheres educadas na Academia Real de Artes de Estocolmo. Trabalhava intensa e rigorosamente. Deixou mais de 1.200 pinturas, 124 cadernos de notas e desenhos em mais de 26.000 páginas manuscritas e datilografadas. Ela foi completamente devota àquilo que considerava ser sua missão: revelar mensagens do mundo espiritual através da arte.

Sua arte diz-se oculta por diferentes aspectos. O mais importante deles é o fato de sua obra ser a representação física em tela do mundo espiritual, por assim dizer, daquilo que não é visível. Mas talvez o fato que desperta maior curiosidade é que a pintora não mostrava suas obras abstratas publicamente e, além disso, deixou testamentado que seus herdeiros não poderiam exibí-las antes de completar 20 anos de sua morte. Ela acreditava que seus contemporâneos não estavam prontos para entender o significado de suas imagens e todas as suas tentativas de mostrar suas obras a grupos seletos e específicos foram recusadas na época. Assim, sua obra abstrata permaneceu secreta por muitos anos.

Mas o fato é que Hilma af Klint pintou uma série de imagens abstratas em 1906, anos antes dos modernistas da abstração Wassily Kandinsky, Kazimir Malevich, Frantisek Kupka e Piet Mondrian produzirem suas obras radicais e não-figurativas na segunda década do século XXI.

Contudo, Hilma af Klint ainda não está nos livros de história da arte e muitos ainda desconhecem a importância de seu legado, mas este cenário está prestes a mudar. Se sua arte foi feita para o futuro, este futuro é agora. Mais de 70 anos após sua morte, muitos têm percebido essa urgência de despertar o mundo para o legado de Hilma af Klint. No Brasil, Luciana Pinheiro Ventre, artista plástica e aconselhadora biográfica, lançará o primeiro livro em português sobre a vida e a obra de Hilma af Klint.

Para desvendar esses tantos mistérios em torno de Hilma af Klint, entrevistei Johan af Klint — o sobrinho-neto da artista, herdeiro de sua obra e presidente da Fundação Hilma af Klint -, e a artista plástica e pesquisadora de Hilma af Klint, Luciana Pinheiro Ventre.

Hilma af Klint, 1907 © Stiftelsen Hilma af Klints Verk. Foto Albin Dahlström/Moderna Museet

Entrevista com Johan af Klint (Traduzida do sueco para o português por mim e Carlos Eduardo D. Borges)

- Quem foi Hilma af Klint?

Hilma af Klint (1862–1944), foi filha do comandante Victor af Klint e de Mathilda af Klint (nome de solteira Sontag). Hilma foi a quarta filha entre cinco. A primeira, Anna, morreu com um ano de idade em 1857. Meu avô Gustaf (1858–1927) foi contra-almirante. Ida (1860–1938) se casou com o engenheiro Knut Haverman. Hermina (1870–1880) morreu aos 10 anos. Sua morte foi muito difícil para Hilma, o que fez despertar seu interesse pela espiritualidade.

- Quem é Johan af Klint e qual a sua relação com a obra de Hilma af Klint?

Johan af Klint é o segundo filho do vice-almirante Erik af Klint — o mais velho dos três filhos de Gustav af Klint. Hilma af Klint foi, em outras palavras, a irmã do meu avô.

Eu sou economista e tenho um mestrado em Berkeley, Califórnia, na área financeira.

Eu trabalhei 15 anos em bancos internacionais no exterior e criei três empresas. Eu fui uma das cinco pessoas que, ao final dos anos 70 e início dos anos 80, introduziu os aspectos financeiros modernos dentro da indústria de exportação sueca (L M Ericsson) e de importação sueca (Svenska Petroleum). Eu fui um dos primeiros a estabelecer um fundo de Venture Capital na Suécia (Innovationsmäklarna). Atualmente, eu estou terminando o meu doutorado em budismo e sou presidente da Fundação Hilma af Klint.

Minha relação com a obra de Hilma af Klint é profunda e fundamental. Quando criança, eu encontrei Hilma várias vezes com meus pais. Eu tinha cinco anos quando ela morreu. Em 1966, quando os vinte anos estipulados por Hilma af Klint expirou e a sua Obra pôde ser despertada de seu longo período adormecida, eu e meu pai a desembalamos e fotografamos em diapositivo. Foi uma experiência memorável. Meu pai, que entendeu que havia uma relação entre a busca religiosa de Hilma e a minha pessoal, deixou toda a Obra em testamento para mim, em 1967, como medida de segurança supondo que poderia acontecer algo. A coleção foi oferecida ao Estado sueco, entre outros — todos recusaram. Em 1972, nós decidimos criar uma rede de segurança jurídica em torno da obra de Hilma, estabelecendo a Fundação Hilma af Klint. Meu irmão mais velho, Gustav, assumiu a presidência da Fundação, pois eu estava no Extremo Oriente a trabalho neste tempo. Eu fui presidente da Fundação entre 2011 e 2014 e consegui, durante este período, impedir uma aquisição hostil da maioria da Fundação por parte dos antropósofos de Järna. Com certa idade, deixei a presidência para a próxima geração. No entanto, em 2016, retornei à presidência da Fundação depois de outra tentativa golpista por parte dos antropósofos de usurpar a maior parte do Conselho da Fundação. Nós, da família af Klint, conseguimos juntos impedir que isso acontecesse. Agora sou eu a dirigir as atividades da Fundação.

Grupp VI, №15, Evolutionen 1908 © Stiftelsen Hilma af Klints Verk

- O que Hilma af Klint escreveu em seu testamento em relação à sua obra? Em sua opinião, por que seu pai, Erik, foi a pessoa que obteve a responsabilidade sobre a obra?

Todas as obras (1.200 pinturas e desenhos, os cadernos de notas com mais de 26.000 páginas, entre outros) foram deixadas em testamento para o meu pai, o vice-almirante Erik af Klint.

Hilma af Klint acreditava que a sua obra não seria apreciada ou entendida pelo público em meados da década de 1940. Ela sugeriu que as obras não fossem exibidas até 20 anos decorridos de sua morte, isto é, 1964. Como já nomeado, meu pai e eu a desembalamos e fotografamos em 1966.

- Como Hilma era vista por sua família e pela sociedade onde viveu?

Hilma nasceu em uma das maiores famílias de oficiais navais do mundo ocidental — descendentes diretos de seis gerações de pai-filho foram oficiais navais, ou seja, a partir de meados do século 18.

Hilma era uma mulher com idéias próprias, com um forte desejo, com uma boa educação, que seguiu seu próprio caminho. Não era fácil para ela neste ambiente dominado por homens, como era a Suécia e o Ocidente. Isso também se aplicava dentro da família, que era um pouco estrita ao estilo militar em sua visão. Naturalmente, Hilma foi aceita dentro da família, mas era um pouco como “o rato que o gato aceitou”. Além disso, a família ficou um pouco decepcionada com Hilma, que recebeu uma educação boa e sólida (5 anos na Academia Real de Artes da Suécia), mas que, de repente, começou a pintar de uma maneira que não se entendia e que ninguém podia ver!

Em geral, Hilma af Klint era uma pessoa rígida, mas amigável e feliz. Ela tinha apenas 1,57 de altura e estava constantemente vestida de preto.

© Stiftelsen Hilma af Klints Verk

- Conte um pouco sobre a relação da Hilma af Klint com o ocultismo e o seu contato com o mundo astral. Em sua opinião, de onde vem sua capacidade visionária e interesse por essas correntes?

A revolução industrial, as descobertas científicas, a imigração de pessoas de volta à cidades onde teriam laços sociais quebrados, etc., foi como “puxar o tapete” das pessoas que acabaram por perceber que havia um mundo/mundos além delas impossível de entender com os cinco sentidos. Portanto, as pessoas buscaram respostas em outros lugares. Uma explosão de novos movimentos espirituais surgiu durante a última parte do século XIX e início do século XX. “A busca” era um fenômeno socialmente comum durante esse período.

Hilma af Klint era uma pesquisadora, mas uma pesquisadora muito séria e consciente de seu propósito. Ela mostrou suas tendências já no início da adolescência. Mas foi apenas depois de sua irmã mais nova, Hermina, falecer em 1880 que Hilma começou a sua busca seriamente. Ela foi membro de grupos espíritas aos 17 anos. Mas, como não os considerava suficientemente sérios e estes não davam respostas às suas perguntas como esperava, esse contato durou apenas três anos (1879–1882). Hilma era membro da Ordem Rosa-Cruz (sem informação do período), cujas influências foram muito importantes para sua pintura abstrata. Em 1889, a Sociedade Teosófica foi estabelecida na Suécia. Hilma tornou-se membro no mesmo ano e permaneceu até no mínimo 1914 (talvez até 1916). Dizem que ela também foi uma das pessoas indicadas para a presidência. Em 1896–1897, ela foi membro da Associação Edelweiss. Hilma e outras quatro se afastaram da Associação Edelweiss e estabeleceram o Grupo de Sexta-feira (“As cinco”). O grupo esteve ativo entre 1896–1906 e representou, de fato, o tempo de preparação de Hilma para a pintura abstrata, com início na parte final de 1906. Durante esse período, Hilma teve contato com um “ser superior” do mundo astral. Finalmente, com 58 anos de idade, ela se tornou membro da Sociedade Antroposófica em 1920 — principalmente para obter acesso à Teoria das Cores de Goethe e ao arquivo dos antropósofos em Dornach (onde ela, sem sucesso, procurou a resposta para o significado de suas pinturas durante o período de 1906–1920).

Vale ressaltar que Hilma af Klint, através de todas essas influências, desenvolveu sua própria interpretação da mensagem religiosa. O fato dela ter pintado em quatro diferentes maneiras durante sua vida é bastante notável. Ela desenvolveu uma expressão própria de sua pintura — se esta era convencional, abstrata, analítica ou aquarela, é menos relevante. Hilma desenvolveu uma pintura própria dentro desses quatro gêneros. Isso é, de fato, incrível.

A pintura abstrata de Hilma é seu modo de reproduzir fisicamente o mundo astral em uma tela ou papel. Mais especificamente, os trabalhos abstratos de Hilma af Klint podem ser caracterizados como: Imagens sistemáticas de idéias filosóficas complexas e conceitos espirituais.

Hilma af Klint From A Work on Flowers, Mosses and Lichen, July 2 1919 © Stiftelsen Hilma af Klints Verk Photo Moderna Museet, Albin Dahlström

- Hilma af Klint escreveu uma série de cadernos de nota/diários. Quantos são e quantas páginas possuem? Sobre o que ela escreveu?

Hilma deixou mais de 124 cadernos de notas e desenhos em mais de 26.000 páginas manuscritas e datilografadas.

Os livros incluem desenhos automáticos e cadernos de nota do grupo “As cinco”, as preparações e pensamentos de Hilma em conexão com suas obras, seus pensamentos exotéricos, entre outros.

A singularidade da propriedade da Fundação é que ela inclui, em princípio, todas as obras abstratas de Hilma com algumas poucas exceções, bem como todos os seus cadernos de nota e desenhos.

Os pensamentos exotérico e espiritual de Hilma existem reunidos somente aqui. Muito valioso e único.

- Como aconteceu a primeira exposição das obras de Hilma af Klint e quais foram as primeiras pessoas que reconheceram que seu trabalho tinha, de fato, valor no contexto histórico?

Olof Sundström catalogou as obras de Hilma após sua morte. Ele percebeu sua grandeza. Olof Sundström tornou-se, então, chefe da Fundação Donner em Åbo.

Ringbom fez uma pesquisa em Åbo e escreveu sobre Kandinsky. Ele encontrou Sundström que falou sobre Hilma af Klint. Quando Ringbom, através de Maurice Tuchman, tomou conhecimento da próxima exposição “The Spiritual In Art: Abrstract Painting 1890–1985” no LACMA (Los Angeles County Museum of Art) em 1986, ele fez com que, em curto prazo, treze exemplares da obra e dos cadernos de nota de Hilma fossem incluídos nesta exposição.

O primeiro livro sobre a arte de Hilma af Klint foi escrito por Åke Fant em 1989 — “Hilma af Klint: Ockult målarinna och abstrakt pionjär”. Depois disso, outros livros sobre Hilma af Klint foram publicados — o mais rico em conteúdo é o catálogo de exposições de 2013 “Hilma af Klint — abstrakt pionjär” do Museu de Arte Moderna de Estocolmo. Uma biografia de Hilma af Klint está em preparação. O livro mais recente é o romance de Anna Laestadius Larsson de 2017 intitulado “Hilma — En roman om gåtan Hilma af Klint”.

foto Jerry Hardman-Jones @Stiftelsen Hilma af Klint Serpentine Galleries London 2016

- Qual a sua opinião sobre a obra de Hilma af Klint — você a definiria como uma obra de caráter exotérico ou como um novo movimento dentro da história da arte?

Hilma af Klint começou a pintar em termos abstratos já em 1906. Isso é indiscutível. Se ela foi a pioneira, em minha opinião, é irrelevante. Ela estava, digamos, cinco anos antes de Kandinsky — e daí? Talvez os proprietários das pinturas de Kandinsky vejam suas obras menos valiosas — mas isso seria um erro. Além disso, há vários pintores e pintoras que, antes de 1906, realizaram pinturas abstratas. O professor Raphael Rosenberg menciona, por exemplo, Victor Hugo (1802–1885), Arthur Wesley Dow (1899), Matthäus Merian (1617) e Stammheimer Missal (cerca de 1170) como pessoas que pintaram obras abstratas (ver páginas 87–100 em “Hilma af Klint — The Art of Seeing the Invisble”, 2015, Ed. Kust Almqvist & Louise Belfrage).

Mas o ponto é que Hilma af Klint começou com a pintura abstrata em séries longas e por um longo período de tempo — não trabalhos individuais. Neste ponto ela é, incontestavelmente, pioneira.

- É correto afirmar, portanto, que Hilma af Klint é a pioneira da arte abstrata?

Sim, Hilma é, na minha opinião, pioneira na pintura abstrata pela sua interpretação própria de quatro formas diferentes de pintar e porque pintava em séries longas.

- Você acredita que a obra de Hilma af Klint pode ser colocada no âmbito universal que serviria e alcançaria a todos os povos independente do contexto onde ela foi criada?

Sim, eu acredito que a Obra de Hilma af Klint na atualidade alcança uma quantidade considerável de pessoas. A sua reprodução de imagem por influências astrais é de interesse para o público de hoje. Hilma af Klint tornou-se, de fato, uma fonte de inspiração para os jovens artistas e para a geração mais nova. Foi uma sorte que a própria Hilma percebeu isso e decidiu que sua “pintura para o futuro” seria mostrada primeiramente quando o futuro chegasse — isso quer dizer, no século XXI.

- Qual o objetivo da Fundação em relação à Obra de Hilma af Klint?

De acordo com o estatuto da Fundação, o Conselho deverá garantir que as obras deixadas por Hilma af Klint sejam preservadas e gerenciadas.

Para além que isso ocorra de uma maneira satisfatória, eu também desejo que Hilma af Klint e sua Obra sejam introduzidas internacionalmente e que, ao mesmo tempo, pesquisas acadêmicas em torno dela sejam iniciadas seriamente. Ambos aspectos estão em andamento atualmente, mesmo que ainda numa fase inicial.

Além disso, desejo fortalecer a Fundação com contatos profissionais e com maior cooperação dentro do mundo dos museus.

Hilma af Klint, Svanen, nr 17, grupp IX SUW,
serie SUW UW, 1915 © Stiftelsen Hilma af Klints Verk.
Photo Albin Dahlström Moderna Museet
- Em sua opinião, qual é o principal legado de Hilma af Klint?

A representação física em tela do mundo astral.

- Quais são os ecos e retornos que a Fundação tem recebido do mundo desde que começaram as exposições e a divulgação da obra de Hilma?

As condições que obtivemos para a exposição no Museu de Arte Moderna de Estocolmo em 2013 resultaram em mais de um milhão de pessoas vendo as obras de Hilma entre 2013–2015, e conseguimos construir uma base de dados de toda a Obra (incluindo as 26.000 páginas). Isto, juntamente com o interesse despertado pelos seminários multidisciplinares, significou que a pesquisa sobre Hilma af Klint e sua Obra teve início seriamente. Além disso, chegou o momento de receber Hilma af Klint e sua Obra. Estamos, de fato, sobrecarregados de forma positiva.

- Como se deu o processo de busca por interessados em ver e reconhecer a obra de Hilma af Klint?

Exposição itinerante durante dois anos, fotografia de todas as obras, seminários multidisciplinares, entre outros.

- Como você acredita que Hilma veria este momento da humanidade se estivesse viva hoje?

Ela estaria cheia de gratidão e alegria em ver que sua busca começa a se tornar realidade.

- Qual é a sua visão para o futuro desta obra e seu reconhecimento?

A Obra de Hilma af Klint está começando a obter uma aceitação a nível internacional.

A Obra de Hilma af Klint é um tesouro nacional sueco.

O Estado deveria levar este tesouro em consideração — por exemplo, para que a Obra de Hilma af Klint seja apresentada em Estocolmo em um local maior e em estreita colaboração com competências profissionais.

Hilma af Klint, Altarbild, nr 1, grupp X, Altarbilder, 1915 © Stiftelsen Hilma af Klints Verk.
Foto Moderna Museet Albin Dahlström

Entrevista com Luciana Pinheiro Ventre

- Como ocorreu o seu primeiro contato com o legado de Hilma af Klint até chegar ao seu livro sobre sua vida e obra que será lançado no próximo ano?

Conheci a obra de Hilma af Klint por acaso quando levava um grupo de artistas e terapeutas para percorrer o caminho dos impressionistas na França em 2008. Visitando a exposição Traces du Sacre no Centre Pompidou de Paris, me deparei com alguns painéis da série “As dez maiores” de quase quatro metros de altura. Estavam dispostos ao lado das lousas de Rudolf Steiner, de obras de Kupka, Mondrian, Kandinsky e Malevich. Naquela mesma época acontecia uma singela mostra de seus desenhos no Centre Culturel Suedois chamada Hilma af Klint — Une modernité rélevée. O impacto que aquelas obras tiveram em mim me acompanhou até a volta ao Brasil.

Como artista e terapeuta biográfica busquei mais informações sobre Hilma e sua obra, mas naquela época nem o Google tinha mais informações do que o que eu havia conseguido no catálogo da exposição de Paris. Ao clicar seu nome nada aparecia a não ser algumas poucas linhas numa língua sueca ininteligível para mim.

Em 2013, o Museu de Arte Moderna de Estocolmo apresentou “Hilma af Klint — a Pioneer of Abstraction”, numa grande mostra que durou quase um ano. A partir dali, alguns olhos se abriram para reconhecê-la, sua obra viajou por museus de Berlim, Veneza, Londres, Nova York, mas ainda com um olhar muito reduzido ao produto das telas. Segundo escritos da própria Hilma, as imagens eram apenas molduras para o verdadeiro conteúdo espiritual que ela desejava revelar, seria preciso um olhar mais focado em seus escritos e em sua trajetória como pesquisadora espiritual do oculto.

Daqui do Brasil eu acompanhava seus passos com admiração e curiosidade, mas ainda com pouquíssimo material disponível. Descobri conexões que me levaram, em 2015, para a Escandinávia em busca de mais elementos para minha pesquisa. Entrevistei o curador e editor de arte da Fundação Hilma af Klint, Ulf Wagner em Järna — sucessor do primeiro estudioso de sua obra em 1970 — Åke Fant. Também conheci de perto os ambientes onde ela viveu em Estocolmo e arredores e visitei sua exposição no museu Henie Onstad Kunstsenter em Oslo. Como a maioria das informações estava submetida à língua sueca ou alemã, investi em diversas traduções do sueco, de livros e artigos relevantes.

Em outubro de 2016 e junho de 2017 estive em Dornach, na Suiça, para seguir com a outra etapa da pesquisa biográfica que envolvia sua relação com Rudolf Steiner e a Sociedade Antroposófica.

A partir de uma determinada época de sua vida, em meados de 1920, Hilma passava temporadas em Dornach. Foram anos desenvolvendo uma nova forma de pintar e trabalhar com seus dons clarividentes a partir de indicações de Steiner ou de pessoas próximas a ele e de seus estudos em Antroposofia. Assistiu palestras e trocou correspondências com Rudolf Steiner até que ele veio a falecer em 1925.

Ao longo da pesquisa fui percebendo as distorções e desconhecimento que haviam na maioria dos relatos de curadores e acadêmicos que escreviam sobre seu encontro com Steiner e sua escolha pela Antroposofia. Por estudar e trabalhar a partir da Antroposofia há mais de 20 anos, pude argumentar com bases sérias sobre algumas afirmações e conclusões que só poderiam ser feitas por quem desconhece os conteúdos e os detalhes dos fatos relacionados a este tema.

Após cinco anos de pesquisa, estou concluindo o primeiro livro brasileiro sobre a vida e a obra de Hilma af Klint, envolvendo sua iniciação e sua trajetória espiritual através da arte. Acredito que o grande legado que recebemos de Hilma af Klint, é que sua obra, pode hoje ser apresentada a públicos das mais diversas culturas e idades, independente de gênero e capacidades intelectuais. Suas imagens alcançam o imaginário simbólico e transcendente, permitindo um diálogo puro e profundo com os arquétipos da alma humana. Há muito a contar e explorar sobre sua vida e sua obra e, todos que se dispuserem a contemplar e absorver este conhecimento, com certeza serão beneficiados.
De stora figurmålningarna, nr 5, Nyckeln till
hittills varande arbete, grupp III,
serie WU Rosen, 1907 @Stiftelsen Hilma
af Klints Verk Foto Moderna
Museet Albin Dahlström

- Você poderia, então, nos contar um pouco mais sobre a relação entre Hilma af Klint e o mundo espiritual?

Com seu passado cristão, Hilma af Klint era muito interessada no lado espiritual da vida. Em 1879 participava de sessões de espiritismo que estavam florescendo na época. As chamadas sessões eram muito populares, e eram onde os médiuns faziam contato com os mortos e transmitiam suas mensagens.

Em 1890, Hilma e quatro outras mulheres formaram um grupo que chamaram de The Five (As cinco), e a partir de 1896, as integrantes do grupo começam a praticar a escrita e o desenho automático durante suas sessões semanais. Hilma af Klint abandona gradualmente as imagens naturalistas em um esforço consciente de se afastar de seu estilo acadêmico. Isso foi mais de duas décadas antes que os surrealistas experimentassem a escrita automática na arte abstrata.

Depois de passar dez anos aprendendo a perceber uma realidade além do visível como médium, suas obras começam a se revelar “através” dela. Assim como fez em seu processo figurativo anterior com a natureza, assim também ela se dedicou na pesquisa sistemática e analítica do mundo espiritual. Em sua busca constante pela ciência espiritual, participava de palestras de Annie Besant, líder da Sociedade Teosófica, onde conheceu Blavatsky e Rudolf Steiner.

Quando encontrou Steiner em 1908, teve a coragem de convidá-lo para visitar seu estúdio e mostrar-lhe seu trabalho, até então guardado em segredo. Ao conhecer sua produção, Steiner não poupou palavras para dizer-lhe que seu trabalho estava além daquele tempo e da compreensão daquela época. Não foi fácil para ela digerir as críticas e considerações daquele líder espiritual que ela considerava influente e carismático e um dos únicos aos quais ela confiava que pudesse entender sua obra e ajudá-la a compreender com o que estava lidando.

Naquele tempo, Rudolf Steiner era chefe da Sociedade Teosófica na Alemanha e, pouco tempo depois, fundou a Sociedade Antroposófica. Era o começo de uma nova iniciação, e Hilma mergulhou cada vez mais com seriedade em seus estudos em busca de orientação e conhecimento. Foram quatro anos de pausa sem uma única pintura mediúnica, Hilma fechou o ateliê e dedicou-se à mãe cega voltando a aceitar encomendas de retratos para se sustentar. Durante este tempo de reflexão, parece ter digerido melhor sua missão e, quando voltou a pintar, continuou a pesquisar o micro e macrocosmos e, em cada fase, apareciam abordagens diferentes, possivelmente inspiradas pelas palestras de Rudolf Steiner que estudava intensamente. Ela atravessou momentos de dúvida e grandes questionamentos e, durante muitos anos registrou sua luta entre a obediência direta dos guias espirituais, e a evolução e amadurecimento de sua pintura a partir de uma elaboração consciente que emergia de sua alma.

- De que maneira você acredita que o fato de Hilma af Klint ser mulher tenha influenciado na recepção de sua obra na época?

Todas as tentativas de Hilma de mostrar suas obras a grupos seletos e específicos foram recusadas na época. Antes de analisar as reações extremamente positivas do público de hoje ao trabalho de Hilma af Klint e a curiosidade sobre sua arte que a exposição despertou, devemos olhar mais de perto para entender melhor as condições em que ela produziu sua obra, a começar pela condição de gênero, como mulher na sociedade sueca do século XIX. Ela pertencia a uma família que teve recursos para introduzi-la na Academia Real de Artes da Suécia, privilégio de poucas mulheres de sua geração.

Entretanto, artistas femininas — mesmo que fossem talentosas e tivessem a mesma educação que seus colegas do sexo masculino — não eram convidadas para as redes masculinas existentes. As mulheres pertenciam à esfera doméstica, como mães e esposas. A atividade artística para uma mulher não era vista como carreira, mas sim como um passatempo antes de se casar, não era algo a ser levado a sério.

Hilma não se casou, não seguiu o roteiro esperado para sua época, e quando se formou como artista, já trabalhava profissionalmente vendendo e exibindo suas paisagens e retratos de estilo naturalista com direito a descrição de sua profissão na lista telefônica ao lado do seu nome.

A mudança decisiva em seu trabalho aconteceu em meados de 1890, quando começou a representar o invisível. Pode parecer uma ruptura completa com seu estilo naturalista anterior, no entanto, o que de fato aconteceu foi uma evolução da artista e da pesquisadora destemida que estava disposta a embarcar de corpo e alma, em uma experiência completamente nova em todos os sentidos.

Suas pinturas surpreendem através da linguagem pictórica radical, escolha de cor e composição. Além disso, sua abordagem sistemática e sua pesquisa visual são impressionantes. Mas levou 42 anos até que o professor de artes Åke Fant, da escola Waldorf de Järna, despertasse interesse e abrisse os baús guardados nos porões da Sociedade Antroposófica, nos arredores de Estocolmo.

Em seu acervo havia 1.200 pinturas, 100 textos e 26.000 páginas de registros e esboços detalhados em mais de 50 cadernos, guardados de forma metódica e enumerados no mesmo padrão de uma pesquisa científica séria.

Mesmo assim, foi somente 17 anos depois que uma pequena parte de sua enorme produção foi exibida em público pela primeira vez na lendária exposição The Spiritual in Art, organizada por Maurice Tuchman no Museu de Arte de Los Angeles, nos EUA, em 1986.

O trabalho da desconhecida artista sueca causou sensação e interesse mas, na época, a falta de informação sobre ela era uma questão relevante para quem não dominava a língua sueca e não vivia na Escandinávia.

Installation view Hilma af Klint A Pioneer of Abstraction, 2013 Foto Åsa Lundén Moderna Museet

Em maio de 2013, organizada pelo Museu de Arte Moderna de Estocolmo, a exposição Pioneer of Abstraction reuniu pela primeira vez trabalhos de todas as fases da carreira da artista, desde a década de 1890 até a década de 1930, lançando nova luz sobre sua obra radical e complexa. Muitas das obras desta exposição nunca foram mostradas publicamente antes — de fato, nem mesmo foram descompactadas desde a morte da artista.

- Como você situa a arte de Hilma af Klint na sociedade atual?

Se uma árvore cai no meio da floresta e não há ninguém por perto para ouvir, teria realmente a árvore caído? Diferentes linhas do pensamento humano, da filosofia à comédia, já abordaram esta questão, gerando muito mais debates e conversas interessantes do que conclusões definitivas. Hilma af Klint é uma destas árvores extraordinárias, cujo eco ouvimos agora, mais de 70 anos após sua morte. A vida e obra de Hilma af Klint são permeadas por todos os temas mais candentes da sociedade atual: novas relações com o espiritual, ruptura de padrões estéticos e a produção feminina na arte mundial.

A história da arte, como em outras situações históricas culturais, foi sempre construída e reconhecida após os fatos, e o objetivo dos artistas nunca foi ilustrar a história da arte, mas desafiá-la ou enfrentá-la. Hilma af Klint, entre outros desafios, revelou que precisamos ampliar nossas perspectivas, ter uma visão mais inclusiva de como a criatividade funciona e de onde as imagens podem vir. Devemos nos proteger de fontes desconhecidas de inspiração ou abraçar uma perspectiva mais ampla de criação?

A partir de 2013 na exposição “Hilma af Klint: A Pioneer of Abstraction” em Estocolmo, sua obra começa de fato a ser revelada em uma exposição de grande abrangência. O público que passou por ali ficou emocionado, surpreso e fascinado. Tudo era enigmático, desde a época em que foram pintadas, ao tamanho das telas, as cores ousadas, as imagens abstratas e até a ausência de assinatura — pois Hilma raramente assinava sua obra. Os espectadores ficaram surpreendidos com suas próprias reações físicas e impressões que iam além da mente racional.

- Quem é Hilma af Klint aos olhos de Luciana Ventre?

Ela era uma artista pioneira, que estava à frente de sua época e que teve a coragem de se abrir para uma compreensão mais ampla do mundo e da consciência humana. Hilma af Klint acreditava no poder da imagem simbólica, acreditava no mistério da vida, na dança harmônica das polaridades e na transcendência da matéria pelo espírito. Há cem anos, ela pintou para o futuro. Pois o futuro chegou, é agora. E agora nós somos convidados a ampliar nossas perspectivas.


Nenhum comentário:

Postar um comentário