Por Carlos Cardoso Aveline
O Processo Entre Duas Vidas
“ (…) Aquele que possui as chaves dos
segredos da Morte é possuidor das chaves da Vida (…)”.
(“Cartas dos Mahatmas”, Carta 136, vol. II, p. 315)
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O texto a seguir mostra a roda cíclica que inclui vida,
pós-morte e renascimento, numa visão comparada
com o ciclo diário de sono, sonho e despertar.
Baseado nas Cartas dos Mahatmas e nos escritos de
Helena Blavatsky, o artigo propõe uma “visão de 360
graus” em relação ao processo completo que ocorre entre
duas vidas do mesmo ser humano, normalmente separadas
por um período que varia de mil a três ou quatro mil anos.
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1. Definindo a Teosofia Original
Antes de abordar o processo que ocorre entre duas vidas físicas da mesma alma imortal, existe algo que deve ser destacado. Uma premissa básica e essencial estabelece um divisor de águas entre a teosofia clássica e as muitas formas de espiritualidade popular.
Para a teosofia de Helena Blavatsky, todo e qualquer caminho espiritual passa pela ampliação natural e não-violenta do contato entre a alma mortal (eu inferior, kama-manas) e a alma imortal (também conhecida como mônada, atma-buddhi, eu superior).
O apego a crenças ou cerimônias impede a livre busca. E o uso ou a intenção de obter “poderes” no plano astral – exercidos pelo eu inferior – são vistos como uma manipulação irresponsável, que em muitos casos tem graves consequências no pós-morte e nas próximas vidas.[1] As raras exceções a esta regra ocorrem no caso das pessoas que têm o dom natural (e não buscado) de fazer curas, e que, além disso, o usam de modo altruísta e não como meio de enriquecimento pessoal.
No grupo de erros por manipulação de energias sutis mas não espirituais entram a projeciologia, a mediunidade, a clarividência induzida, e toda e qualquer manipulação pessoal e intencional de energias sutis, cuja meta não seja o bem da humanidade em seu conjunto. Estes são os chamados “siddhis inferiores”, cuja busca é um sério obstáculo para a verdadeira espiritualidade. Quanto às chamadas “canalizações”, há duas possibilidades:
1) Quando elas não são mera fantasia, entram no mesmo grupo da mediunidade que funciona no plano ilusório dos siddhis inferiores;
2) Quando são apenas fantasias têm o mau carma da falta de discernimento e da adoção de uma atitude infantil diante do que é sagrado.
A teosofia autêntica evita transformar o caminho espiritual em um espetáculo público de fogos de artifício. Ela não busca fatos extraordinários – e quando eles acontecem não os divulga. Trabalhando lenta e gradualmente, ela transfere de modo silencioso e quase imperceptível o foco de consciência desde o eu inferior para o eu superior. Este é o caminho de Raja Ioga e Jnana Ioga, que inclui o melhor de Carma Ioga. É um projeto de ação de longo prazo, e implica várias encarnações. Ele é percorrido através da reflexão, da autodisciplina, da autopurificação, e da contemplação das grandes verdades universais.
O caminho teosófico inclui:
* A ação altruísta;
* Uma visão interdisciplinar das coisas;
* Uma atitude impessoal diante da vida, e
* A prática da compaixão universal.
Deste modo se amplia Buddhi-Manas, o princípio da inteligência sem fronteiras.
No momento humano atual, está sendo preparada a sexta sub-raça da quinta raça-raiz. Este é o próximo passo da evolução humana. Não se trata de uma sub-raça no sentido físico. A teosofia é a filosofia da fraternidade, e nenhuma raça-raiz ou sub-raça é intrinsecamente superior ou inferior a outra. Todas são igualmente instrumentos a serviço da evolução da mônada ou alma imortal, e cada mônada deve renascer nas diferentes raças-raízes e sub-raças.
Qualquer forma de racismo é um mecanismo de ignorância espiritual. O novo tipo humano terá uma percepção de mundo naturalmente universal, e os pioneiros desta humanidade vêm despertando em números sempre crescentes desde o final do século 19. O movimento teosófico autêntico tem como meta ajudar este processo de estímulo e de despertar da inteligência superior, que é intrinsecamente solidária.
Os cidadãos do futuro se caracterizam pela intuição raciocinada e pela razão intuitiva, características inseparáveis do sentimento de fraternidade planetária. Estas funções da consciência ativam novos circuitos cerebrais e novas áreas da mente humana. E, nesse despertar, a atenção e o discernimento são fundamentais.
Deve-se desenvolver a capacidade de enxergar o divisor de águas entre as coisas pseudoespirituais do eu inferior e as coisas verdadeiramente universais e essenciais. O correto é levar uma vida simples e altruísta, evitando as propostas “espirituais” aparentemente espetaculares, mas que não possuem um conteúdo durável nem são aprovadas pelo bom senso.
Para a filosofia esotérica, como para o Novo Testamento, o estudante deve, pois, procurar o tesouro que está nos céus, e o resto lhe será dado por acréscimo.
Colocada esta premissa, vejamos como os Mestres dos Himalaias descrevem, em “Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett”, o processo que ocorre entre duas vidas. É uma evolução que se desdobra em dois planos, fundamentalmente. Primeiro vem o plano do eu inferior; depois, o plano do eu superior.
2. Kama-loka, o Local dos Desejos
A primeira etapa após a morte física é o kama-loka (literalmente, “local de desejos e sentimentos pessoais”).
O kama-loka corresponde de algum modo ao “purgatório” cristão. A grande diferença, é claro, está em que o purgatório cristão é um local coletivo administrado autoritariamente pelo deus dos sacerdotes, enquanto o kama-loka é um estado de espírito, e é chamado de um “local” apenas no sentido simbólico. O kama-loka é uma realidade subjetiva inteiramente individual. É o produto do carma específico daquela alma mortal. É a colheita do que foi plantado em vida pelo eu inferior.
O trecho das “Cartas dos Mahatmas” que veremos a seguir começa revelando qual é a duração normal do kama-loka. Ela varia “desde algumas horas até uns poucos anos”, conforme o caso, e salvo exceções.
O fragmento deixa claro que os suicídios são algo gravíssimo; e que outros tipos de morte violenta também causam situações extremamente difíceis no processo pós-morte. A gravidade destas situações decorre do fato de que a alma ainda não está preparada para desapegar-se interiormente de nada, inclusive devido à sua pouca idade, em muitos casos, e devido ao fato de que a morte ocorreu durante a vivência de fortes paixões pessoais.
A conclusão prática disso em termos sociais é que deveríamos evitar ao máximo os diferentes tipos de morte violenta em todo o mundo. É de fundamental importância que as pessoas tenham a chance de viver vidas longas, de refletir sobre a vida, e inclusive de rever suas vidas nos anos finais. A constante recordação do passado, feita pelos idosos, é saudável e útil. Ela prepara lentamente o terreno para os decisivos “30 a 90 segundos” finais de vida, quando a revisão final de toda a existência ocorrerá como em um “flash”, determinando a “resultante vetorial”, a nota-chave cármica, o rumo de todo o processo sutil que vai desde uma vida física até outra vida física.
Assim, quando os idosos revisam constantemente fatos passados há muito, eles não estão “ficando caducos”. Estão organizando suas lembranças, organizando seus arquivos vivenciais, tirando lições e trabalhando para “deixar seus registros em ordem” quando se forem. Isso não quer dizer que estejam perto da morte. A tarefa pode começar décadas antes. Os seres humanos podem e devem ter todo o seu passado a seu lado, conscientemente, enquanto vivem o presente. A negação artificial e voluntariosa do passado não ajuda. Não há separação entre passado, presente e futuro. É a compreensão do passado, e não a sua supressão, que ilumina a alma e a liberta para viver o presente.
Este trecho das Cartas esclarece o verdadeiro desastre que é a prática espírita ou umbandista da mediunidade. No futuro, podemos esperar que os movimentos espíritas se libertem deste erro, adotando uma visão mais ampla das coisas e compreendendo que, na verdade, o caminho evolutivo gira em torno do eu superior ou alma imortal, e não da alma mortal ou de suas cascas astrais.
Nos parágrafos a seguir, em negrito, o mestre usa o termo “Ego” como sinônimo de “eu superior”. Outros termos técnicos são explicados entre colchetes, sem negrito, em itálico.
Diz o Mestre:
A regra é que uma pessoa que tenha uma morte natural permaneça “desde algumas horas até uns poucos anos” dentro da atração da terra, isto é, no Kama-loka. Mas há exceções, no caso dos suicidas e daqueles que têm uma morte violenta em geral. Consequentemente, um destes Egos, por exemplo, que estivesse destinado a viver, digamos, 80 ou 90 anos, mas que se matou ou foi morto por acidente, vamos supor, aos 20 anos – teria que passar no Kama-loka não “alguns anos”, mas neste caso 60 ou 70 anos, como um Elementário [casca astral em que predominam energias egoístas], ou mais precisamente um “andarilho terrestre”, já que ele não é, infelizmente para ele, nem mesmo uma “casca”. Felizes, três vezes felizes, em comparação, são aquelas entidades desencarnadas que dormem seu longo sono e vivem em sonhos no seio do Espaço! E pobres daqueles cuja Trishna [sede de viver] os atraia para os médiuns, e pobres destes últimos, que os colocam em tentação com um Upadana [a aquisição de órgãos sensoriais] tão fácil. Pois ao agarrar-se a eles e satisfazer sua sede de vida, o médium ajuda a desenvolver neles – é de fato a causa de – um novo conjunto de Skandhas [registros cármicos que perduram de uma vida para a outra], um novo corpo, com tendências e paixões muito piores que as do corpo anterior. Todo o futuro deste novo corpo será determinado, deste modo, não só pelo Carma de demérito do conjunto ou grupo anterior, mas também pelo do novo conjunto do futuro ser. Se pelo menos os médiuns e espíritas soubessem, como eu disse, que cada novo “anjo-guia” a que eles dão as boas-vindas em êxtase é induzido por eles a um Upadana que produzirá uma série de males indescritíveis para o novo Ego, o qual renascerá sob a sua sombra abominável, e que a cada sessão espírita – especialmente com materialização – eles multiplicam as causas de sofrimento, causas que farão o infeliz Ego fracassar em seu nascimento espiritual, renascer na pior das suas existências – eles seriam, talvez, menos liberais na sua hospitalidade. E agora você pode entender por que nos opomos com tanta força ao espiritismo e à mediunidade.
[ Da Carta 68, pp. 312-313, vol. I, de “Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett”, Ed. Teosófica, Brasília, dois volumes. ]
3. Que Consciência Existe no Pós-morte?
Vejamos agora como funciona a consciência, nas etapas do pós-morte que ocorrem no kama-loka. Os dois fragmentos a seguir pertencem à Carta 70C, volume I de “Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett”. Devemos olhar para eles sabendo que são apenas dois curtos fragmentos. Eles esclarecem algumas coisas, e levantam outras perguntas.
É importante levar em conta que estes ensinamentos não podem ser compreendidos repentinamente. O subconsciente do estudante tem seu ritmo próprio, diferente do ritmo da mente consciente, e necessita participar deste processo de investigação. Daí a necessidade de paciência.
O primeiro dos dois fragmentos inclui o conceito de “feiticeiros”, usando-o no sentido de “feiticeiros egoístas”. Não nos interessa investigar aqui esta situação infeliz. Basta dizer que são seres destituídos de inteligência espiritual, mas bastante astuciosos em sua busca de metas egocêntricas. Estes seres conseguem postergar de certo modo a sua colheita cármica “durante um certo número de vidas”. Este tema não nos interessa: nosso caminho é o caminho da inteligência espiritual e da unidade consciente com a Lei Una, a lei universal da Verdade, da Justiça e do Amor.
O termo “adepto” significa um “conhecedor experiente no caminho da Iluminação espiritual e cósmica”, que é o caminho do altruísmo e do autossacrifício pela libertação de todos os seres.
No primeiro fragmento, o mestre afirma que só em casos excepcionais alguém percebe, no pós-morte, que o seu corpo físico está morto. E alguém perguntará:
“Como pode ser isso?”
A resposta é simples. Usando a lei da analogia, cabe lembrar que também no estado de sonho raramente alguém percebe que possui um corpo físico, e que este corpo físico está adormecido, tranquilo e descansando. A situação é equivalente.
Diz, pois, o primeiro trecho da página 327, Carta 70C:
Aqueles que sabem que estão mortos em seu corpo físico só podem ser adeptos ou – feiticeiros; e estas duas são as exceções à regra geral. Como ambos foram “co-trabalhadores da natureza”, o primeiro para o bem, o segundo para o mal, no trabalho dela de criação e no de destruição, eles são os únicos que podem ser chamados de imortais – no sentido cabalístico e esotérico, é claro.
Até aqui, o primeiro fragmento.
O segundo fragmento é igualmente surpreendente, e aborda o fato de que não há, no pós-morte, o pensamento tal como o conhecemos em estado de vigília. O pensamento que conhecemos necessita do funcionamento ativo do cérebro físico. Como entender a consciência além do cérebro? Aqui também vale a lei da analogia. Todos podemos perceber que, quando estamos com muito sono ou cansaço, temos a sensação de “não conseguir mais pensar”. Se o pensamento tal como o conhecemos pudesse ocorrer fora do cérebro, não haveria esta sensação de impossibilidade.
Embora possamos dizer que a mente não é o cérebro, é fato que grande parte das funções mentais desaparece junto com a atividade do cérebro físico. Das funções mentais que desaparecem no pós-morte, algumas serão recuperadas mais tarde, em um plano subjetivo de consciência.
Diz, então, o segundo trecho selecionado da página 327:
Assim, quando o homem morre, a sua “Alma” (quinto prin.) se torna inconsciente e perde toda memória tanto das coisas internas como das coisas externas. Se sua estada em Kama Loka tiver de durar apenas alguns momentos, ou horas, dias, semanas, meses ou anos; se ele teve uma morte natural ou violenta; se isto ocorreu na juventude ou na velhice, e se o Ego era bom, mau ou indiferente, em todos estes casos a sua consciência o deixa tão subitamente quanto a chama deixa o pavio, quando assoprada. Quando a vida se retira da última partícula de matéria do cérebro, as suas faculdades perceptivas são extintas para sempre, e seus poderes espirituais de cogitação e volição (em resumo, todas aquelas faculdades que nem são inerentes à, nem possíveis de adquirir pela, matéria orgânica) se extinguem por certo tempo.
Até aqui o fragmento dois, e é desnecessário dizer da sua extrema importância. Assim como o primeiro fragmento, ele põe por terra grande quantidade de ilusões sobre o processo que ocorre entre duas vidas físicas.
Após o kama-loka o foco central da consciência renasce purificado no Devachan. Ali a consciência viverá um longo período de descanso e bem-aventurança, colhendo o bom carma do aspecto espiritual da sua vida terrena. Isso, porém, nem sempre é algo fácil de compreender.
4. O Devachan Não Será Um Sonho Egoísta?
Uma estudante de teosofia clássica perguntou se o Devachan não é, afinal, uma espécie de egoísmo:
“Com tantos seres necessitando ajuda em nosso planeta, por que alguém deveria ficar um período de um a três mil anos em estado de felicidade constante?”
A pergunta é significativa, porque de fato o Mestre usa a expressão “egoísmo” em relação ao Devachan. Ele escreve, na resposta três da Carta 68:
Naturalmente se trata de um estado; um estado, digamos assim, de intenso egoísmo, durante o qual o Ego colhe a recompensa do seu altruísmo na terra.
Cabe esclarecer algo desta frase do Mestre. Em budismo, como em teosofia, a palavra “egoísmo”, quando se refere a níveis elevados e espirituais de consciência, nada tem a ver com o egoísmo tal como ocorre em níveis inferiores de consciência. Acrescentando elementos de flexibilidade à frase, o Mestre escreveu “digamos assim” antes de “intenso egoísmo” e sublinhou estas duas palavras, que os editores das Cartas corretamente publicaram em itálico.
O termo “egoísmo”, aplicado a níveis espirituais de consciência, significa um tipo de iluminação espiritual que não está diretamente ligado à compaixão universal. No entanto, é um estado puro e espiritual. É profundamente inofensivo e nada tem a ver com o egoísmo no sentido de prejudicar algum ser, nem em intenção, nem em pensamento, nem de forma alguma.
Como a “pessoa” que está no Devachan não é um Mahatma, um Buddha nem um alto iniciado, ela viverá “eternamente” durante dez, vinte ou mesmo quarenta séculos experimentando o prazer espiritual correspondente à sua vida passada.
Como vimos, esta individualidade não tem o sentido vivo de solidariedade por todos os seres como ocorre no caminho espiritual avançado. E esta é uma das diferenças fundamentais entre o Devachan, que é involuntário, e o Nirvana, que é voluntário.
O Nirvana equivale, por analogia, a uma espécie de “Devachan” que é alcançado durante a própria vida do corpo físico. O Nirvana não ocorre obrigatoriamente, por “decurso de prazo”, como o Devachan. É alcançado por um mérito próprio consciente, depois de ser buscado com eficiência. Ele não contém ilusões psicológicas. Ele liberta o ser individual da obrigação de reencarnar na fase atual da humanidade.
O Nirvana é um êxtase que ocorre quase sempre ligado ao processo da compaixão. Ele é altamente compatível com um sentimento de profunda unidade com todos os seres que já existiram ou irão existir no futuro. Um discípulo avançado conhece durante a vida física uma parcela significativa do Nirvana e assim “não precisa” da bênção demorada do Devachan para purificar-se espiritualmente antes de nascer de novo. Assim, o eu superior de um discípulo avançado “desativa” a engrenagem obrigatória do pós-morte típico. Ele pode reencarnar mais rápido, com o objetivo de ajudar a humanidade.
O caminho dos Mestres dos Himalaias e dos seus discípulos é o caminho simbolizado nos evangelhos do Novo Testamento, na lenda de Gautama Buddha e em outras escrituras religiosas. É o caminho do sacrifício total pelo bem-estar de todos os seres. Tal sacrifício é grande fonte de felicidade. Um buscador egoísta, por outro lado, não pode encontrar o caminho da alma imortal. Todo efeito surge da causa que lhe corresponde. Se a meta (o efeito a ser alcançado) é altruísta, a motivação (a causa que o provocará) deve ser igualmente altruísta. Este é o caminho da vitória.
5. Perguntas e Comentários
Para muitos, a perplexidade é inevitável quando começam a estudar o processo da reencarnação e especialmente quando leem sobre o “local dos deuses”, o Devachan. Estas são algumas perguntas levantadas durante uma troca de ideias, e os comentários a elas:
Pergunta 1:
Lamento dizer que a visão espírita do pós-morte, com suas cidades bem organizadas, sua vida social, seus restaurantes e sua possibilidade de viver e ter contato com as pessoas, parece muito mais atraente do que uma bem-aventurança subjetiva que corresponde a um estado de sonho, no Devachan.
Comentário:
É claro. É compreensível que uma religião em busca de seguidores prometa “uma vida melhor” no “além”, na qual o indivíduo possa manter todos os aparentes confortos e apegos que tem na vida física, apenas com a vantagem da ausência de sofrimento. Também é compreensível que uma pessoa que vá a um restaurante na cidade espírita subjetiva possa comer à vontade sem preocupar-se com o nível de colesterol. Isso seria o bônus sem ônus, a colheita sem plantio, a causa sem consequências. A natureza não funciona deste modo.
O caminho da verdade é estreito exatamente porque está rodeado de ilusões pelos dois lados. A filosofia esotérica ensina a trilhar o caminho íngreme da renúncia às ilusões, e coloca a verdade acima da vontade pessoal de dizer coisas agradáveis a nossos amigos.
A árvore se mede pelos frutos e, levando em conta os resultados, a verdade meio-amarga é melhor que a ilusão agradável.
O fato é que, quando a pessoa morre, ela perde de imediato os seus três princípios inferiores, que são:
1) o corpo físico (sthula sharira);
2) a vitalidade (prana); e
3) o patrimônio genético e cármico que orienta a vitalidade (linga-sharira).
Sem estes três princípios, o indivíduo já não possui a capacidade de criar carma novo. Morto o corpo físico, não há mais livre arbítrio. É verdade que o indivíduo não tem consciência desta perda, e que podemos perguntar-nos também quantas pessoas – mesmo enquanto vivem no plano físico – possuem um real livre-arbítrio sobre suas vidas, tomando decisões independentes, e quantas se deixam levar cegamente pelas circunstâncias. Porém no segundo caso a “irresponsabilidade impensada” também é uma escolha, pela qual terão de pagar um preço alto. Com a morte, já não há carma novo.
Nos momentos finais da vida física cerebral, são determinados o conteúdo e o rumo de todo o processo após a morte física. Nestes instantes, que duram talvez entre 30 e 90 segundos, ocorre uma “recapitulação” completa e detalhada da existência humana que termina. É neste minuto ou minuto e meio que surgem, como uma resultante vetorial, o “script” e a trajetória básicos de todo o processo de mil a três mil anos (em média) que está começando, e que levará até uma nova existência.[2]
Assim, a fantasia de que alguém pode “fazer o que quiser” durante o pós-morte é um produto da imaginação idealizadora de pessoas que não sabem o que é, nem como funciona, a consciência humana após a destruição do corpo físico.
Esta falta de conhecimento pode ser superada, porém, estudando os ensinamentos clássicos sobre metempsicose ou reencarnação. Há seres “Imortais” (para usar um termo taoista) que têm intimidade com o Nirvana – ao qual renunciaram apenas para ajudar a humanidade. Eles sabem bem o que é o Devachan, e conhecem perfeitamente o funcionamento de todos os estágios da vida pós-morte. Estes seres transmitiram ensinamentos que estão ao nosso alcance. Podemos usar nosso livre-arbítrio a respeito disso, e este é um privilégio de grande valor.
Pergunta 2:
A ideia do Devachan me provoca uma sensação de tristeza. Há um sentimento de perda de algo, mas não sei definir bem o sentimento. Talvez a minha noção de bem-aventurança após a morte seja demasiado terrena. O fato é que o Devachan me sugere uma situação de isolamento.
Comentário:
É provável que 70 ou 80 por cento do caminho espiritual consistam em abandonar as ilusões mentais e emocionais que nos impedem de perceber a verdade.
O estudo e o debate sobre Devachan e outros aspectos da reencarnação mostram para o mundo subconsciente do estudante que ele não é imortal. No dia-a-dia, a maior parte dos indivíduos se relaciona com a vida física como se ela fosse ilimitada. É verdade que, por dentro, somos imortais. Esta sensação interior está certa, mas nossos instrumentos externos têm um prazo de validade limitada e é bom ter isso claro.
Estudando a visão teosófica clássica dos processos pós-morte, ganhamos “uma consciência de 360 graus” do ciclo da vida e da morte; não com base em idealizações, mas com base em fatos. E aprendemos a valorizar melhor o tempo que nos toca viver.
As idealizações bem-intencionadas não ajudam muito. Não faz sentido haver cidades pós-morte, pelo mesmo motivo de que não existem cidades, nem restaurantes, durante os nossos sonhos. Se houvesse tais cidades no astral, todos poderiam ter acesso a elas ao dormir, já que ao dormir vamos ao astral. O fato central é que, assim como os sonhos de um indivíduo fisicamente vivo são – salvo exceções – inteiramente subjetivos e correspondem ao seu mundo pessoal, assim também os estados pós-morte são resultado do seu mundo subjetivo, que é exclusivamente seu e que corresponde a seu próprio carma. Isso não elimina toda possibilidade de contato real entre um habitante dos estados pós-morte e pessoas fisicamente vivas. Mas este contato ocorre apenas excepcionalmente e é com certeza parcial, limitado, e na sua essência não-verbal, porque é muito mais profundo que o contato verbal. [3]
Pergunta 3:
É decepcionante saber que o contato constante e estável entre o habitante do Devachan e as pessoas e situações que ele mais amou é apenas subjetivo e não objetivo; que pertence ao mundo dos sonhos, e não da realidade.
Comentário:
Sim, mas esta decepção faz bem.
A verdade é que, se o habitante do Devachan mantivesse contato literal com gente fisicamente viva, ele teria preocupações e ansiedades em relação às pessoas e situações importantes para ele. Do ponto de vista prático, já não existiria Devachan.
Devachan não é isolamento: é desapego – acrescido de felicidade. Mas se o habitante do Devachan pudesse ter um telefone celular físico e “real” para conversar com quem ele ama e ver como vão seus filhos e netos e conseguir emprego para eles, por exemplo, que Devachan seria esse? Basta imaginar a situação. Deste modo não haveria bem-aventurança nem descanso, mas sim um exílio, um afastamento forçado, sofrido, cheio de preocupações, esperanças, medos. Este tipo de sentimentos existe na verdade muito antes, durante a estadia em kama-loka. Mas ocorre apenas como recordações em circuito fechado, naturalmente – salvo exceções.
Cabe questionar a nossa noção de realidade. É perfeitamente compreensível que alguém diga: “Fico decepcionado por saber que o Devachan não passa de um sonho.” Mas é recomendável pensar bem sobre esta frase. O que é “realidade” para nós? E o que é “sonho”?
No mundo tridimensional, usando cinco sentidos, pensamos que estamos “vivendo a realidade” por um motivo muito simples. Esta é a única realidade que conhecemos enquanto estamos acordados. Quando dormimos e sonhamos, é o sonho que parece real, e a “realidade paralela” do estado de vigília não é sequer imaginável ou concebível. Nem é lembrada.
Devemos ter, pois, a humildade de reconhecer que a nossa noção de realidade é muito relativa, quando estamos acordados e quando estamos dormindo. Para o cidadão médio, o mundo tridimensional é o real. Os outros estados de consciência – entre eles o êxtase contemplativo – não passam de um tema de especulação. Para o habitante do Devachan, é o Devachan que é profundamente real. A percepção teosófica permite integrar gradualmente estas “realidades paralelas”.
Há algo de ilusão na ideia de que as pessoas estariam realmente acordadas, quando estão em estado de vigília.
A vida demonstra que elas estão sonhando. O estado de vigília parece ser parente próximo do sonambulismo. As pessoas estão seguindo seus sonhos: o sonho do dinheiro, o sonho da prosperidade material, o sonho do amor romântico, o sonho das férias em algum lugar, o sonho da promoção no trabalho, o sonho do caminho espiritual, o sonho de fazer bem aos outros, e assim sucessivamente. A teosofia tem um nome e um remédio para isso. O nome é maya. O remédio é o caminho da ética e da sabedoria, que purifica a mente e aumenta a sua lucidez.
As pessoas que sonham “acordadas” no mundo tridimensional têm, naturalmente, todo direito de chamar este sonho de realidade. Mas os habitantes do Devachan também têm o direito de viver profunda e verdadeiramente a sua felicidade ilimitada, que é, aliás, mais íntegra, completa e verdadeira do que os sonhos do cidadão terrestre que pensa que está acordado.
Pergunta 4:
Por que motivo, então, eu tenho a sensação de que há um isolamento no Devachan?
Comentário:
Não existe qualquer experiência de isolamento no Devachan. Há um sentimento de comunhão e felicidade irrestritas. A sensação de isolamento pertence aos ambientes psicológicos estreitos do mundo tridimensional. A experiência de isolamento também pode ocorrer no universo do kama-loka, porque o kama-loka gravita em torno dos desejos pessoais.
No devachan, a alma imortal libertou-se da ignorância espiritual e tem direito a um longo descanso do sofrimento. Cumprem-se ali, essencial e interiormente, os melhores sonhos alimentados ao longo da vida passada. É só quando a experiência de descanso e bem-aventurança se esgota e “perde interesse” que ocorre o impulso capaz de levar a mônada a uma nova situação, a partir da qual ela terá de renascer outra vez no plano físico. O nascimento será uma bênção renovada, porque a aprendizagem espiritual se dá durante a vida física, e aprender é um processo abençoado.
NOTAS:
[1] Veja em nossos websites associados os artigos “Sobre o Uso de Poderes Psíquicos” e “Nem Tudo Que é Oculto é Espiritual”.
[2] Sobre o fato de que o intervalo médio entre duas vidas varia entre mil e mais de três mil anos, veja “Cartas dos Mahatmas”, volume II, Carta 85-B, p. 40, metade superior. Helena Blavatsky escreve em um dos seus artigos que o intervalo gira em torno de 3.000 anos: veja “Transmigration of Life Atoms”, texto publicado em “Theosophical Articles”, H.P. Blavatsky, Theosophy Co., Los Angeles, 1981, volume II, p. 249. O mesmo artigo está publicado no volume V de “Collected Writings” de Helena Blavatsky, publicado pela TPH dos Estados Unidos.
[3] Sobre a existência eventual de contato autêntico entre habitantes dos mundos subjetivos do pós-morte e indivíduos fisicamente vivos, veja “A Chave da Teosofia”, Helena P. Blavatsky, obra disponível em várias edições, Capítulo 2, subtítulo “Diferença entre Teosofia e Espiritismo”, especialmente na longa nota de pé de página. E também “Cartas dos Mahatmas”, Ed. Teosófica, Volume I, Carta 68, resposta à pergunta 3, pp. 298-300.
***
Veja também os artigos “A Teosofia e a Reencarnação”, “A Lei da Vida Imortal”, “Reencarnação Consciente e Imediata” e “Vida, Morte e Iluminação”, de Carlos Cardoso Aveline. Eles estão disponíveis em nossos websites associados.
Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
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