terça-feira, 8 de março de 2016

As Causas do Conflito


Por P. Krishna

Aprendemos com Krishnamurti que se realmente queremos compreender uma questão não devemos formar opiniões a respeito dela, nem tomarmos partido de um ponto de vista particular; devemos começar com perguntas e confiar na observação dos fatos. As questões fundamentais e profundas são exploradas com uma percepção passiva que pode descobrir as verdades que subjazem toda questão. A Sociedade Teosófica, por sua vez, diz que não há religião superior à Verdade. A partir daí a nossa mente pode compreender melhor, com sabedoria, transformando a visão com a qual se olha a vida. Por isso é muito importante explorar as raízes do conflito

O que exatamente queremos dizer por paz e conflito? Neste momento muitas pessoas diriam que estamos atravessando um período de paz porque não há uma guerra global em andamento. Sendo assim, será a paz apenas o intervalo entre duas guerras? E o que queremos dizer por guerra? Geralmente chamamos de guerra quando as armas começam a atirar e existe conflito armado. Mas será realmente paz o período anterior a uma guerra? Não será o ódio entre duas comunidades – sejam elas nacionais, religiosas, de casta, classes sociais ou de comunidades linguísticas – uma forma de guerra psicológica que aumenta em sua manifestação externa e que eventualmente leva ao estado de beligerância físico? Onde eu traço a linha e digo que é um conflito? Não existe uma fronteira tão bem definida; existe uma fronteira somente na manifestação externa desse ódio. Já que um leva ao outro, as raízes do conflito não jazem apenas nas especificidades da situação que gerou o conflito. Esses fatos não são irrelevantes; eles devem ser verdadeiros, mas não parecem ser a raiz do conflito.

Assim, se estamos falando a respeito de uma paz duradoura e não de uma paz temporária, a pergunta adquire uma importância muito mais profunda. Temos de cavar profundamente para compreender. Se não fizermos isso, então nossa existência torna-se uma série de conflitos e teremos desenvolvido vários mecanismos para a resolução do conflito. O conflito não é um problema novo para a humanidade. Lemos a respeito do Mahabharata, que é pré-histórico, mas até onde vai a história conhecida, sempre tivemos guerra e conflito em diferentes partes do mundo, e ainda estamos tendo agora. Resolve-se um problema num lugar e ele surge em outro. Quando aparecem circunstâncias favoráveis, elas dão surgimento a um novo conflito, seja grande ou pequeno. Você pode ser bem-sucedido em controlá-lo, mas a causa principal do conflito não jaz nessas circunstâncias porque as circunstâncias são sempre variáveis.

Sendo assim, onde está a principal causa do conflito? Não seria importante examinarmos de onde essas sementes vêm, e se podem ser eliminadas? Podemos não saber a resposta, mas devemos fazer a pergunta com seriedade. De outro modo, estamos não apenas aceitando-a como parte inevitável da vida. Você pode dizer que é inata à natureza humana, algo de que jamais será possível nos livrarmos. Estivemos fazendo isso durante cinco mil anos de várias maneiras. Tentamos a reforma política; estamos tentando a reforma econômica e da legislação; também tentamos a religião organizada em torno dos ensinamentos de um grande sábio, tentamos seguir a mensagem de amor e compaixão, chamando a nós mesmos de seguidores de Gandhi, Jesus, Buda, e assim por diante, mas nada aconteceu. Ao final de todas as tentativas estamos onde estamos hoje, tal como revelado diariamente nas telas da televisão e nos jornais. Este não é um problema simples. Por que os seres humanos não foram capazes de resolver este problema durante milhares de anos, embora tenhamos progredido muito em cada ramo de conhecimento e em novas habilidades? Pensamos que somos muitos inteligentes e de algum modo o somos. Mas não fomos capazes de resolver os problemas do conflito e da guerra.

Podemos ver esta questão através da analogia de ter dor de cabeça todo dia e tomar uma aspirina cada vez que ela acontece para se livrar do problema. Podemos dizer que este é um modo inteligente de viver? Não esta,ps dizendo, 'não trate do sintoma'. Se você tem uma dor de cabeça terrível, precisa tomar uma aspirina, de outro modo não conseguirá pensar com clareza. Assim, a aspirina pode ter seu lugar; mas se você se torna dependente da aspirina, jamais irá livrar-se da doença subjacente. Assim, estamos considerando: o que é a doença? Apesar do fato de pensarmos que somos muito inteligentes, e que a inteligência vem sendo aplicada no campo do conhecimento, da ciência e da tecnologia, por que será que ela não foi capaz de resolver este problema? Desenvolvemos várias formas de aspirinas para lidar com a dor de cabeça, mas não fomos capazes de erradicar a doença. Será que isso deveria permanecer sempre uma utopia, jamais se tornar uma realidade? O que podemos tentar que não tentamos nos últimos cinco mil anos? Será meramente uma questão de tentar a mesma coisa de uma maneira melhor?

Convém que façamos as perguntas mais fundamentais e mais profundas que dizem respeito à nossa educação e talvez à educação também da humanidade para se viver de maneira mais sábia. Observamos que em todo o mundo diz-se que os seres humanos são o pináculo da evolução, que somos muito superiores a todas as outras formas de vida que surgiram antes de nós. Acredito que precisamos questionar essa presunção. Certamente somos mais espertos, podemos compreender melhor do que os animais, mas será que usamos nossa capacidade de pensar, de imaginar, de planejar,para a melhoria da humanidade, para a melhoria da Terra, ou fomos mais destrutivos? A respeito do dano causado à Terra, estamos lendo a cada dia sobreaquecimento global, catástrofes ecológicas, etc. O que fizemos com a  nossa própria espécie? Nenhum animal ou planta jamais destruiu outras espécies ou a sua própria espécie tanto quanto nós. E contudo sentimo-nos superiores e mais inteligentes!

Estamos definindo inteligência em termos de poder? Talvez sejamos mais poderosos do que os animais porque podemos matá-los, e explorá-los. Se chamamos isso de inteligência, então não foi inteligente expulsar os ingleses da Índia. Existe uma definição biológica dada por Darwin que diz que inteligência é o que leva à sobrevivência. Mesmo por essa limitada definição biológica, podemos afirmar que somos mais inteligentes? Estamos buscando a sobrevivência ou levamos toda a terra e o meio-ambiente à beira do holocausto como não fez nenhum outro animal ou espécie?

Acontecerá pela mesma razão dada por Darwin, ou seja, que uma espécie desaparece quando é incapaz de se adaptar ao ambiente e não consegue viver em harmonia com ele. Tornamo-nos 'inteligentes' demais para a sobrevivência porque a sobrevivência não requer este tipo de inteligência que estamos cultivando. As formigas e as baratas têm sobrevivido mais tempo do que nós; elas não levaram o mundo à beira da extinção. Assim, somos realmente inteligentes ou apenas definimos inteligência de modo não inteligente? Deixo para vocês esta questão fundamental.

O ensino superior condiciona nossa mente a pensar ao longo de certos sulcos estreitos. Ele nos aliena do terreno das realidades do mundo em que estamos vivendo ao compartimentalizar nosso conhecimento. Esse tipo de inteligência pode não ser a inteligência que leva à sobrevivência e portanto, pode não ser a verdadeira inteligência. Não estou pedindo para que vocês acreditem nisso. Temos de investigar, descobrir se é verdadeiro. Assim, existem muitas perguntas que devemos fazer se realmente queremos chegar à raiz de todo esse problema do conflito. Podemos continuar resolvendo-o superficialmente mas torna-se necessário fazê-lo, precisamente porque não o resolvemos na raiz, e portanto ele verdadeiramente jamais termina.

Ao longo dos anos a manifestação do problema tem crescido. A guerra é agora muito mais perigosa do que era antes, mas a doença subjacente é a mesma: o ódio entre comunidades humanas que gera conflitos. Dizem que a guerra começa nas mentes dos homens, e isso é verdade. É onde está a raiz; e onde devemos atacá-la. O resto segue como causalidade lógica. Assim como há causalidade na Natureza estudada pela ciência, também há causalidade em nossa psique. A não ser que cheguemos à causa principal e a eliminemos, o restante segue como um corolário lógico, uma sequência inevitável. Portanto, não é mera filosofia levar a cabo esta investigação; é uma necessidade urgente.

Assim, onde começa esta divisão entre comunidades? Começa ao se dizer, 'somos diferentes deles'. Cada comunidade sente que 'somos diferentes deles'. Como a mente define e traça essa linha? Esta é outra questão fundamental. Quem são os 'nós' e quem são 'eles'? Baseada em quê a mente traça essa linha? O Paquistão era parte da Índia 1947 e nós amávamos o seu povo como nossos irmãos. Hoje, não serão eles mais nossos irmãos? A fronteira é uma linha traçada sobre a terra, ou estará a linha dentro de nossa cabeça? Vejo que o cão cruza a fronteira sem necessidade de visto diplomático, o vento sopra através das fronteiras, as florestas cruzam a linha, as cadeias de montanhas atravessam. Não existe tal fronteira sobre a terra! Acredito que ela éuma criação de nosso próprio pensamento e também, certamente, de nossa história. Prossigamos.

Mesmo que eu veja que outra pessoa é diferente de mim, porque isso cria divisão? Esta é outra pergunta que devemos examinar de perto:quando uma diferença torna-se divisão, e por quê? A diferença é natural. Somos todos diferentes uns dos outros: na idade, na riqueza, no conhecimento, na cor da pele, na altura e na forma. Tudo na Natureza é diferente de tudo o mais. Assim, a diferença é algo natural. A diferenciação é também natural. Se eu não consigo distinguir uma árvore de um edifício, há algo de errado comigo. Mas quando isso se torna uma divisão? Será este um processo inevitável, ou será um processo psicológico criado por minha própria mente? Assim, será algo existente na Natureza, ou será uma ilusão construída pela minha mente?

A ilusão é algo que não tem existência na Natureza; é simplesmente uma criação de minha própria mente, minha imaginação, ou algo a que estou dando enorme importância e que na realidade não é importante. Assim, estará o conflito sendo gerado da ilusão ou dos fatos? O fato é que somos todos diferentes uns dos outros. Será a divisão também um fato, ou será uma criação de minha própria mente, minha forma limitada de pensar?

Será o hindu verdadeiramente muito diferente do muçulmano? Esta é hoje uma grande fonte de conflito na Índia. Estou empregando isso como exemplo. Serão essas duas comunidades de seres humanos verdadeiramente diferentes, ou será que eles se sentem tão diferentes simplesmente porque pensam assim? O pensamento pode mudar. Se eles descobrirem que seu modo de pensar é falso, a ilusão terminará. A ilusão pode terminar pela percepção da verdade. Se você descobre que o falso é falso, então o falso termina. Portanto, se a causa tem raízes na ilusão, a causa pode ser eliminada, mas quando a causa não está radicada na ilusão não se consegue eliminá-la. Assim, é importante investigar esta questão.

Para fazer uma analogia, se eu caio e quebro uma perna, isso me faz sentir dor. Essa não é uma dor psicológica; não é criação da mente. O sábio sofre essa dor tanto quanto eu. Mas eu também sinto muita autocomiseração que o sábio não sente. Assim, o sofrimento psicológico tem de ser separado da dor, que é biológica. O sofrimento psicológico pode surgir da ilusão, de uma imagem mental que não tem realidade, enquanto a outra é factual. Quando você elimina isso, descobre que existe desejo, existe apego, existe medo, existem todos os instintos que são os mesmos em todos os seres humanos. Assim, onde estará a diferença? Apenas no conhecimento, a camada superficial de condicionamento adquirida enquanto se cresce nesta vida. Ele é diferente porque eu nasci numa família diferente, numa cultura diferente, num país diferente, e ele nasceu em outro. Essa camada superficial é chamada de condicionamento da mente, o conhecimento adquirido nesta vida. Somente isto é diferente.

Desta forma, o hindu ouviu algo a respeito de Deus, ele acredita no que ouviu e propaga-o como verdade. O muçulmano ouviu algo diferente a respeito de Deus. Ele também não sabe o que é Deus, mas acredita no que ouviu e propaga-o como verdadeiro. Assim, são essas ilusões que nos dividem. Se tivéssemos a humildade de dizer a nós mesmos, 'eu verdadeiramente não sei o que é Deus', o que é verdade, seríamos amigos inquirindo juntos o verdadeiro significado de Deus! Não sabemos que não sabemos. Não é importante dizer, 'eu sei'; é mais importante saber que você não sabe e viver com uma mente investigativa que postula a verdade como o desconhecido. Portanto, é importante reconhecer o valor da dúvida, duvidar das próprias opiniões, das próprias conclusões. De outro modo, jamais teremos uma mente que aprende; jamais seremos sábios.

A paz requer uma mente global que sente pelo todo da terra e pelo todo da humanidade. Essa é a realidade. Todas essas divisões surgiram por razões históricas, a partir de nossa própria ignorância. Isso me leva ao que o Buda assinalou há muito tempo. Ele disse que a ignorância é a causa da dor; ignorância não como forma de conhecimento, mas como ilusão. Vejo que essas ilusões são muito profundas, que mesmo meu sentimento de que sou muito diferente do paquistanês, do americano ou do chinês tem raízes na ilusão. O nacionalismo está radicado na ilusão e daí surge muito de nossa divisão e conflito.

A raiz do conflito jaz na ilusão; portanto, o conflito pode terminar porque a ilusão pode terminar. Este é o lema da Sociedade Teosófica: Não há religião superior à Verdade.  Quando você descobre o que é verdadeiro e o que é falso, a ilusão termina. Quando a ilusão termina, a estreiteza da mente termina. Você não é mais um nacionalista, não é mais um hindu de mente estreita; você sabe que não é diferente de outro ser humano que provém de uma outra família. Você vê essa diferença somente como uma diferença de cor de pele, uma diferença de altura, diferença no tipo de alimentos que come, e isso não é importante. Quando se da tremenda importância a isso, está criada a divisão.

Quando os ingleses chegaram na Índia, eles menosprezavam os indianos porque comíamos com as mãos e não com garfo e faca. Quando o indiano vai à Inglaterra, ele pergunta, 'por que essas pessoas têm de comer com garfo e faca quando têm dedos?' Ambas são apenas opiniões que surgem do fato de um homem ter sido ensinado algo e outro algo diferente. Isso é tudo. Não há nada de superior ou inferior a respeito disto. Assim, a divisão surge quando atribuímos superioridade ou inferioridade a uma diferença, que é um tipo de julgamento de valor.De onde a mente cria esse julgamento de valor? Todas as diferenças não criam divisão. Nunca tivemos guerra entre pessoas altas e pessoas baixas, pelo menos até agora! Não somos tão estúpidos assim!

Às vezes vemos uma diferença somente como diferença. Mas quando se vê um homem praticando Namaz (adoração) e outro orando no templo, vê-se mais do que apenas uma diferença e desenvolve-se 'gosto e aversão'. Por que a mente não percebe isso apenas como uma diferença? Quando a diferença torna-se divisão, e por quê? É um processo psicológico. A diferença é natural; ela não é psicológica. Se eu não noto que o homem da África é negro e que o homem da Europa é branco, algo está errado com meus sentidos. Mas se eu disser que os brancos são superiores aos negros, eu me transformo num racista e ponho fim à fraternidade universal do homem! Então, por que a mente diz isso?

Se você examinar verá que isso ocorre porque abordamos as coisas com algum tipo de desejo em nossa mente. Se eu lhe perguntasse se a figueira sagrada é superior ao eucalipto, como você responderia a essa pergunta? Você diria que a figueira é uma figueira e que o eucalipto é um eucalipto. O que você quer dizer por superior? Se você quiser sombra, a figueira é superior. Se você quiser óleo de eucalipto, então o eucalipto é superior. Mas se você não quer coisa alguma, o que é superior? Assim, eu vejo que esse sentimento de superioridade está ligado ao fato de eu querer que as coisas me sejam favoráveis, e esta é essência do processo egoico.

Quando abordamos a vida de modo egoísta, então nossa nacionalidade, nossa religião, é usada para construir nosso ego, para encontrar uma identidade. Assim, podemos eliminar o psicológico e permanecer somente com os fatos? É necessário estar perceptivo do perigo deste processo psicológico, que significa estar perceptivo dos fatos para não ficar preso na ilusão. Não será isso inteligência? Porque se você não tem essa inteligência, fica preso na ilusão, é atraído à divisão, e começa a odiar e a destruir o amor, a destruir a amizade. Mesmo irmãos que cresceram juntos e muito próximos, ou amigos íntimos, separam-se ao lutar entre si porque não têm essa sabedoria. Esse processo egoico surge de nossa abordagem à vida, porque damos tremenda importância ao que recebemos das árvores, deste país, de nosso amigo.

A raiz de todo conflito, tanto em nossa vida pessoal quanto na sociedade, jaz nesse processo egoico dentro da consciência humana. O ego é essencialmente um mendigo, sempre pedindo coisas para si em todo relacionamento. Daí surge o gosto e a aversão, divisão, e portanto conflito. Precisamos descobrir se é possível aproximarmo-nos de todos e de tudo como um verdadeiro amigo, não buscando nada desse relacionamento. Somente então haverá um relacionamento de amor verdadeiro no qual não há divisão, e consequentemente não há conflito.

Texto retirado da Revista Sophia - edição 43

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